Por Clara Ferreira Alves
O IRAQUE NUNCA EXISTIU
O Iraque, para ser um só país, precisa de um ditador. Ali, a democracia, como o Iraque, nunca existiu
O Iraque. Milhões de estratégias, análises, opiniões, estatísticas, táticas, peritagens epropostas, opções e decisões, planos e previsões mais tarde, regressámos à casa de partida. Milhares de milhões de dólares e de petrodólares. Milhares de soldados e armas e guerras e guerrilhas, tratados, promessas, armistícios, alianças, coligações e traições. Milhares de assassínios, massacres, extermínios, torturas, vítimas. De corpos pulverizados, queimados, esburacados, baleados, executados, torturados, enegrecidos e desfigurados, inchados e explodidos, aterrorizados, raptados, decapitados, desaparecidos, esquecidos. O Iraque.
As acusações do costume. A culpa é de Obama, que retirou as tropas. A culpa é de Bush, que nunca devia ter invadido.
A culpa é de Bush, que invadiu e parou às portas de Bagdade. A culpa é dos americanos, que se aliaram a Saddam contra o Irão e agora querem aliar-se com o Irão contra o ISIS. A culpa é de Nuri Al-Maliki. A culpa é de Assad. A culpa é dos aliados, que deixaram a Síria fragmentar-se em corpúsculos, milícias, guerrilheiros e terroristas. A culpa é da Turquia e do Qatar e dos Emiratos e da Arábia Saudita e de todos os sunitas, com as suas seitas, petrodólares, armas, sectarismos, hegemonias. A culpa é de Israel, o eterno bode expiatório. A culpa é de Tony Blair, o poodle de Bush. A culpa é da dupla de malfeitores Rumsfled/Cheney. A culpa é do servil Barroso. Ou do comparsa Aznar. A culpa é do Ocidente. A culpa é do Médio Oriente, que nasceu torto e traçado a régua e esquadro. A culpa é da partição do império otomano pelas potências. A culpa é do petróleo e da ganância. A culpa é da natureza selvagem das tribos do deserto que só T. E. Lawrence amou e sabe-se como a história acabou. A culpa é dos militares. A culpa é do Paul Brenner, um imbecil à solta no inferno. A culpa é do Petraeus. A culpa é do calor. Da aridez. Da miséria. Do sofrimento. Da pobreza. Da doença. Da violência. Da brutalidade. Do sadismo. A culpa é de Saddam e do partido Baath. A culpa é da purga dos baathistas. A culpa é dos ayatollahs. A culpa é da CIA. A culpa é de Osama. A culpa é da Al-Qaeda. A culpa é dos serviços secretos. A culpa é dos exércitos privados. A culpa é dos soldados iraquianos. A culpa é dos traficantes de armas. A culpa é da desmilitarização da Europa. A culpa é das Nações Unidas. A culpa é do sistema capitalista, que só pensa em dinheiro e esquece os povos. A culpa é da fissura do ódio entre sunitas e xiitas. A culpa é dos cristãos. A culpa é do Profeta. E, como o islamismo descende do cristianismo e do judaísmo, a culpa é dos judeus, criadores de Jeová e Abraão. A culpa é, enfim, de Deus. E de todos nós, seus humildes servos.
E agora? Quando o jogo do passa-culpas acabar, convém ler uns livros de História. O Iraque (donde o arménio Gulbenkian tirou bastos proventos) nunca foi um país. Nunca teve consistência territorial, étnica, religiosa, social, política ou outra. Nem económica, por causa dos poços negros a norte e sul e das águas a leste e oeste. As lealdades distribuem-se por hierarquias. Família, clã, tribo, terra e casa, sunismo, xiismo, islamismo, cristianismo minoritário (ou cristianismos, no plural). E, antes dos monoteísmos, filiações históricas e geográficas pelos séculos fora até à Mesopotâmia, a “terra dos rios”. Custa a crer que ali nasceu a nossa civilização, a escrita cuneiforme, a Suméria. E a Bíblia, as matrizes do judaísmo e dos seus mitos e profetas, no Cativeiro da Babilónia. Ali nasceram civilizações semitas e os impérios persas e as cidades-estados do Tigre e do Eufrates. Antes da riqueza do petróleo, a riqueza da região era a dos grandes rios gémeos, que deram à martirizada Fallujah os jardins, canais e palmeiras que a embelezavam e aos pântanos do sul, e a Basra, o Chatt Al-Arab, a fertilidade e o peixe abundante. Existe no Museu Britânico uma secção dedicada aos Assírios e aos seus magníficos relevos de pedra e estátuas aladas, os palácios de Nínive e Nimrud e Khorsabad, os leões caçadores de Assurbanípal, os tesouros de uma civilização desaparecida e engolida pelas guerras, os saques, as areias e as tempestades. Ou bombardeada. Restam as ruínas dos zigurates de Ur, Babilónia reconstruída ou os derrubados arcos da persa Ctesiphon. A Mesopotâmia, terra de guerras, está no Pergamon. Nos museus de Berlim, Istambul, Paris, Londres e Nova Iorque. Sem a autoridade do déspota, do rei, do chefe, do general, do ditador, nunca teria havido civilização, arte, herança. Sumérios, Acadianos, Assírios, Babilónicos, Persas, Hititas. O sanguinário Saddam reclamava-se o herdeiro de Nabucodonosor. O Iraque, para ser um só país, precisa de um ditador. Ali, a democracia, como o Iraque, nunca existiu.
Jornal Expresso SEMANÁRIO #2173, 21 de Junho de 2014
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