Miguel Sousa Tavares
Vamos lá fracturar
1 A melhor das hipóteses era descobrir e demonstrar que o Governo mandara criar uma lista VIP de pessoas particularmente protegidas pelas Finanças, no que aos seus processo dizia respeito. O PS, mancomunado com a extrema-esquerda e os demagogos de vários azimutes, começou por tentar, gulosamente, agarrar essa maravilhosa oportunidade. Sem pensar duas vezes, encostaram-se ao dirigente sindical dos funcionários das Finanças — o qual, para desviar as atenções do escândalo de se ter descoberto que havia funcionários (140 identificados) que se dedicavam a bisbilhotar processos de “contribuintes mediáticos” com os quais nada tinham funcionalmente a ver, substituiu-o pelo escândalo da existência da tal lista VIP, que seria patrocinada pelo Governo e, mais concretamente, pelo secretário de Estado Paulo Núncio. Só que o homem, chamado a mostrar as provas que jurava ter da lista e da directa intervenção do Governo na sua criação, mostrou duas mãos cheias de nada.Governo, resumida toda a história a uns “testes” que nunca foram para diante, o que restava ao PS, que não meter a viola ao saco?
Presumo que neste fim-de-semana, auscultando o seu eleitorado nos cafés da terra, a senhora deputada esteja a receber muitas palmadinhas nas costas: o povo adora demagogia
Mas não, não é assim que eles vêem a política. Não interessa a verdade do que aconteceu ou deixou de acontecer, não interessa sequer discutir a questão de fundo. Não interessa saber que há países, como os Estados Unidos, onde quem não paga os impostos devidos vai preso, mas quem viola o segredo fiscal de um contribuinte também vai preso. Porque à responsabilidade total dos contribuintes nas suas obrigações corresponde a responsabilidade total da Administração na preservação do seu sigilo fiscal. E, assim, eis que, falhada a sorte grande e o segundo prémio, não conseguindo demonstrar nem que o Governo ordenara, nem que sabia, nem sequer que concordava com a tal lista VIP, o
PS, em lugar de deixar morrer o assunto, resolveu antes apostar ao menos na terminação: se o Governo não ordenara, não queria e não sabia, devia ao menos saber. E, por isso, como explicou uma deputada socialista, aos gritos histéricos na Assembleia, o secretário de Estado tinha sido “desautorizado”, tinha “deixado de existir”, e só lhe restava demitir-se. Presumo que neste fim-de-semana, auscultando o seu eleitorado nos cafés da terra, a senhora deputada esteja a receber muitas palmadinhas nas costas: “Assim é que é, então aqueles malandros queriam segredo sobre as suas fichas nas Finanças? Quem não deve não teme!”. Presumo que a senhora deputada, quanto mais não fosse para não estragar o seu reconfortante fim-de-semana, não lhe tenha ocorrido balbuciar umas palavrinhas sobre essa coisa deslocada chamada direito à privacidade.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
2 Noutra questão, os socialistas levantam dúvidas bem mais sérias: a questão da lista de condenados por pedofilia a ser fornecida às autoridades judiciais, policiais, serviços de reinserção social e comissões de protecção de menores. E, mediante pedido fundamentado, também acessível a quem detenha poder paternal sobre crianças. Trata-se de uma antiga ideia da ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, e que, anos atrás, debateu comigo num programa televisivo. Já então ela defendia esta medida, que eu rebatia, essencialmente com base numa deformação mental que tenho: desconfio, por princípio, de quando a invocação do bem comum exige o sacrifício de direitos e garantias individuais. E, para todos os efeitos, a lista e o acesso a ela significa uma pena acessória de quem foi julgado, traduzindo-se numa espécie de condenação perpétua, que não presume nem aceita a possibilidade de reinserção e arrependimento. Mas confesso que, se já então tinha dúvidas, hoje tenho ainda mais. Tudo o que hoje sabemos sobre a pedofilia, sobre o seu carácter de tara incurável (independentemente de saber se a taxa de reincidência no crime é de 40 ou de 90%), sobre as circunstâncias de facto que a tornam propícia (seja na escola, na igreja ou nos acampamentos juvenis), são dados de que não se pode fugir, se o principal é proteger as potenciais vítimas e não os sabidamente pedófilos. É uma discussão complexa, em que cada argumento esbarra num contra-argumento, e a solução final adoptada nunca será pacífica e muitas vezes não evitará a perpetração do crime ou a consumação de uma injustiça.
Penso que a discussão merece ser feita sem preconceitos e, sobretudo, sem ser inquinada pelo politicamente correcto. E há sinais disso: basta ler nas entrelinhas os habituais defensores do lobby gay, para perceber que eles e elas procuram forma de esconjurar esta lei como homofóbica. Há anos, o Supremo Tribunal de Justiça, julgando um caso de violação de um menor por parte de um homossexual, produziu uma vergonhosa sentença em que estatuía que tal crime não poderia ser julgado mais grave do que se tivesse sido cometido por uma mulher, sob pena de tal contrariar o princípio constitucional da liberdade de orientação sexual de cada um (neste caso, do criminoso). Ou seja, para os juízes do STJ, para um miúdo de dez ou doze anos, era indiferente ser violado por uma mulher ou por um homem, pois o que havia a defender era o direito à orientação sexual do criminoso e não a da vítima, que ainda nem tinha idade para a ter. Espero bem que esta lei, a ser chumbada, o seja por razões jurídicas convincentes e não pela vassalagem ao politicamente correcto ou por força do terrorismo intelectual característico do lobby GLT (veja-se o exemplar caso da perseguição de Elton John e amigos à dupla Dolce e Gabana, só porque eles, apesar de serem um casal gay, se pronunciaram contra a adopção por parte dos casais homossexuais). Estamos a falar de coisas muito sérias, que só não entende quem não tem filhos.
3 O Conselho Deontológico da Ordem dos Advogados decidiu instaurar procedimento disciplinar ao advogado de Sócrates, João Araújo, pelas ofensas dirigidas a uma jornalista do Correio da Manhã-TV. Acho que fez bem. Mas também acho que o Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas, que se apressou a defender a jornalista em causa, deveria ver na íntegra a reportagem que ela fez para a CMTV (acessível no YouTube), perseguindo os advogados pela rua fora, colada a eles sem os largar durante minutos e de microfone estendido captando as conversas entre ambos, numa atitude de deliberada provocação. Gostaria que me esclarecessem se aquilo é o que agora se chama jornalismo.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia
Jornal Expresso SEMANÁRIO#2213, 28 de março de 2015
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