Porcos e cabras à solta
Onde se fala de uma cidade de costumes ainda medievais
Há pouco menos de 300 anos, os habitantes do Porto andavam preocupados com a quantidade de porcos e outros animais que, livremente, percorriam as ruas da cidade. A preocupação dos portuenses atingiu um tal grau, que, no dia 17 de abril de 1720, os munícipes reuniram na Câmara exclusivamente para o efeito de "discutir como se havia de evitar o andarem porcos pelas ruas e outros animais, como são as cabras...".
Na ata da sessão municipal daquele dia lê-se, nomeadamente, o seguinte: "(...) e pelos procuradores do povo foi dito que havia geral queixa de andarem os porcos e cabras pelas ruas desta cidade, livremente, não só por causarem imundícies e maus cheiros prejudiciais à saúde pública, mas também por serem causa de descomposturas nas procissões, assim nas que vai o Senhor, por viático, aos enfermos, como nas que se fazem nesta cidade por leis, usos e costumes antigos (...)".
Pois é! Pelos vistos, e a fazer fé nos relatos que chegaram até aos nossos dias, os porcos e as cabras não respeitavam nada nem ninguém. Mais grave ainda: nem respeito tinham pelas procissões. Há uma referência em que se diz expressamente que os tais animais chegavam a "investir contra os anjinhos, contra os senhores das opas e até contra os padres, o senhor bispo e contra o próprio Deus presente na sagrada hóstia (...)".
Perante um assunto de tanta gravidade, que fez a Câmara ? Deve ter feito muito pouco, ou mesmo nada, porque quatro anos depois o juiz de fora foi à autarquia e disse lá que, "não tendo sido bastantes os pedidos que se haviam feito" no sentido de acabar com o mau costume de andarem pelas ruas porcos e cabras, ele, juiz, interpretando o sentimento generalizado das gentes da cidade, "iria apresentar queixa a sua majestade", que era, naquele tempo, o rei D. João V. E a queixa teve provimento.
O monarca mandou uma provisão (uma ordem) segundo a qual "todo o oficial de justiça que encontrasse ou achasse pelas ruas desta cidade, vielas e travessas, e dos seus subúrbios, porcos e cabras, grandes ou pequenas, os tomem por perdidos para si e deles façam o que bem lhes parecer". E o provisão real terminava com uma advertência séria: "e todo o oficial de justiça que assim não proceder será rigorosamente castigado".
Tudo isto se passava no interior do velho burgo, na cidade amuralhada, num tempo em que na Muralha Fernandina havia várias portas e postigos para se entrar e sair do Porto. A cidade desse tempo era muito diferente da que hoje conhecemos. Mas muito mais pitoresca, porque conservava ainda em grande parte a fisionomia dos velhos tempos medievais.
Os hábitos de limpeza dos portuenses foram sempre superiores aos dos moradores de outras cidades
Setenta anos depois, parece que o Porto havia ganho a batalha, não contra os porcos e as cabras, mas da limpeza citadina. Quem tal nos garante é o padre Agostinho Rebelo da Costa, na sua excelente "Descrição topográfica da cidade do Porto", publicada em 1789. São dele as seguintes afirmações: "além de se ocuparem diariamente de vinte até trinta homens em extrair as imundícies da via pública, concorre também muito para a sua limpeza serem as ruas todas lajeadas de pedra comprida, larga e lisa, que não dá lugar a atoleiros ou charcos asquerosos (...)".
Depois de ler isto, fica-se com a ideia de que o problema da limpeza das ruas do Porto estava resolvido. Dos porcos, nem sequer se ouvia falar. A favor desta tese apareceu ainda, dez anos depois, em 1799, a opinião de um célebre naturalista alemão, de apelido Link, que tendo estado no Porto escreveu que"(...) esta cidade, pela claridade que há nas suas novas ruas e pelo estado de limpeza em que todas se encontram, não se parecia com nenhuma outra cidade portuguesa, nem de qualquer outro país da Europa meridional", acrescentando que "só podia ser comparada com as arejadas e limpas cidades da Inglaterra".
Trinta anos depois destas afirmações (1829), imaginem!, os porcos voltam à baila. Então não é que um outro viajante inglês que passou pelo Porto, o reverendo Kinsey, depois de corroborar o que havia sido dito por Link, que "as ruas do Porto eram tão largas e limpas como as de qualquer cidade inglesa", escreveu que "os únicos limpadores eram os porcos, a quem era permitido vaguear pelas ruas da cidade sem serem molestados", e que, acrescenta Kinsey, "gozam do privilégio de poderem sair de casa à tardinha para irem em busca dos vegetais que se deitam à rua depois das horas do jantar e que apodreceriam, produzindo mau cheiro se fossem deixados pelas calçadas até à manhã seguinte".»
História da construção dos urinóis![]()
Foi durante o consulado de Francisco Pinto Bessa enquanto presidente da Câmara do Porto, que se começaram a instalar urinóis públicos em alguns pontos da cidade, como se pode ver na foto mais pequena, que nos mostra a Praça do Infante com o urinol ao centro. Vivia-se a época do ferro forjado, material em que foram construídos esses melhoramentos. Procurou-se então aliar o útil ao agradável e alguns dos exemplares eram verdadeiras obras de arte. A maior parte dos urinóis desapareceu da via pública. Existem dois na alameda ajardinada que liga a Rua de Santos Pousada à Avenida de Fernão de Magalhães, como curiosidade.
JORNAL DE NOTÍCIAS, 19 ABRIL, 2015
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