Gisberta, 10 anos depois
OBSERVADOR 21 Fevereiro 2016
Catarina Marques Rodrigues
5. Oficina de São José: “Um depositório de crianças”
Era o primeiro julgamento de Pedro Mendes Ferreira. Foi atribuído um advogado a cada um dos menores e Pedro, então com 25 anos, estava responsável por defender um menor de 13 anos, David. Hoje pode dizer que a estreia lhe saiu bem, já que a despenalização da pena dos menores só ocorreu por causa do recurso interposto por Pedro: o recurso foi pedido para David mas, como era um processo conjunto, beneficiaram todos. Tinham sido acusados de homicídio qualificado e acabaram condenados por ofensa à integridade física e omissão de auxílio.
O caso está ainda bem fresco na memória do advogado. Foi um marco na sua carreia e o aparato mediático não deixou que a memória esquecesse o assunto. “Antes de chegar lá, a ideia que eu tinha era que estaríamos a falar de um bando de delinquentes. Depois percebi que não era isso. Estávamos a falar de crianças que foram abandonadas pelos pais e depositadas numa instituição.”
Pedro tentou mostrar que “a realidade social complicadíssima” os levou a agarrarem-se “à única coisa que tinham: o sentimento de grupo“. E essa realidade veio do histórico familiar e, sobretudo, do que viviam na Oficina de São José. Pedro Mendes Ferreira endereçou um pedido ao tribunal para ir visitar a instituição. Numa hora, ficou feito o desenho principal do que iria argumentar em julgamento.
"Na instituição havia a 'Camarata dos Mijões': quando alguém fazia xixi na cama, ficava um mês naquela camarata a dormir em cima do xixi."
Pedro Mendes Ferreira, advogado de defesa
Os problemas começavam no topo: o padre, chefe da instituição. “Era uma pessoa muito difícil, muito austera, que criou ali uma série de hierarquias de forças. Começava nele, passava para os diretores e aquilo ia-se replicando até aos mais novos. A ideia era: se o que está acima de mim é austero comigo, eu vou ser austero com o que está em baixo. E isto era o dia a dia deles. Chegava a um certo ponto que era à base da pancada. E outras coisas”, aponta Pedro Mendes Ferreira.
As “outras coisas” têm um nome: “abusos sexuais”. O caso Gisberta foi o trampolim para a descoberta de agressões de monitores, maus tratos, atos sexuais com adolescentes, abusos sexuais entre alunos e até “menores vítimas de prostituição”, noticiava o Público. Em 2010, a Oficina de São José acabou por fechar.
Ainda com tudo a quente, Pedro lá foi perceber as dinâmicas. Higiene, nem vê-la: “Não tinham escova de dentes”, por exemplo. E como era a pedagogia incutida? Um exemplo: “Havia a ‘camarata dos mijões’: quando alguém fazia xixi na cama, em vez de se preocuparem em saber a razão, não. Ficavam um mês na camarata dos mijões a dormir em cima do xixi”, relata o advogado.
O advogado Pedro Mendes Ferreira recebeu o Observador no escritório na Avenida da Boavista, no Porto
O que havia era disputado até à última. “Uma coisa que nós aproveitámos para o processo foi a questão do sentimento de posse, que eles não tinham. Por exemplo, o David não tinha as sapatilhas dele. Havia um par de sapatilhas e quem acordasse primeiro apanhava aquelas sapatilhas e decidia ‘ok, hoje vou andar com estas’. Não tinham jogos, não tinham PlayStation, não tinham nada. Não havia o sentimento de posse de ‘eu tenho as minhas coisas’”.
Tinham apenas uma coisa, garante o advogado: o fenómeno de grupo. “Não havia vontade individual de bater, havia vontade de o grupo bater. Quem não alinhasse, ficava mal visto no grupo.” Gisberta terá sido um meio de preservar o “único bem” que tinham. “Aquelas crianças têm o preconceito de terem sido abandonadas pelos pais e depois a única coisa que lhes resta é o grupo. Se estivessem em casa com os pais, de certeza que nenhum deles tinha feito isto”, defende.
"A instituição recebia 306 euros do Estado por criança. Dava cerca de 32 mil euros por mês. Dava para terem ótimas condições. Mas soube-se que o padre, entretanto afastado, aplicava parte desse dinheiro em Bolsa."
Pedro Mendes Ferreira, advogado de defesa
“Nós conseguimos demonstrar em tribunal que esse fenómeno de grupo foi preponderante na vontade de praticar aquele ato. A lógica era: quem atirasse mais pedras era o maior. Condena-se, claro, mas de alguma forma explica os factos”, sustenta ainda Pedro Mendes Ferreira.
“Quem tem o poder paternal tem o dever de vigiar o menor. Neste caso, a Oficina de São José não vigiou os menores até à escola. Eles iam para a escola sozinhos, iam por aí. Daí nós termos imputado parte da culpa a quem detinha o poder paternal, entregue pelo Estado. Nós entendemos que a Oficina de São José não cumpria com esse papel que lhe foi delegado. Recebia a prestação, mas a seguir não cumpria“, denuncia ainda o advogado.
Ao contrário do padre, o diretor Germano Costa decidiu colaborar na investigação. E isso significou acusar instituição que dirigia. Logo durante a visita que Pedro fez à Oficina de São José, Germano percebeu que o advogado queria atribuir culpas à instituição. “E ele quis dar-me a entender que também não pactuava com aquele tipo de gestão.” Em agosto, fase quente do processo, decisões finais a borbulhar, chega uma notícia: Germano suicidou-se. “Foi numa altura de grande pressão”, recorda Pedro. Deixou uma filha de sete anos e a mulher grávida de sete meses.
Pedro Mendes Ferreira admite que criou uma “ligação forte” com David: “Nós estivemos meio ano juntos, quase todos os dias”, justifica. O rapaz “ainda mandou lembranças nos dois ou três Natais a seguir, ia dizendo como é que estava, mas depois fomos perdendo o contacto”. Sabe que voltou para casa dos pais, no Seixal, e que a mãe foi buscar os outros dois filhos que tinha na instituição. “A confiança na instituição acabou”, diz o advogado.
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