FOTOGRAFIA
UM HOMEM INESQUECÍVEL
O 44º Presidente dos Estados Unidos é recordado e celebrado num estupendo livro de fotografias do lusodescendente Pete Souza, fotógrafo oficial da Casa Branca
Texto JORGE CALADO
Descontração Com Ella Rhodes (filha do vice-assessor de Segurança Nacional Ben Rhodes) mascarada de elefante para o Halloween, na Sala Oval. 30 de outubro de 2015 fotografia oficial da casa branca/Pete Souza
Tive a sorte de estar em Washington, D.C., no dia 4 de novembro de 2008 quando Barack Obama foi eleito pela primeira vez Presidente dos Estados Unidos da América. Vivi então uma das noites mais emocionantes e felizes da minha vida. Seguira com atenção a longa campanha, fascinado pela humanidade e eloquência brilhante do candidato; apreciara-lhe a sinceridade e inteligência nas entrevistas e debates; lera os livros sabiamente escritos (sem a ajuda de ghost writer). Mas até ao último minuto não acreditara que pudesse ser eleito. Um preto na Casa Branca? Nessa noite partilhei o entusiasmo global. Não me lembro de nenhum outro político que no último meio século tivesse gerado tamanha aclamação à escala mundial. Ele era o Presidente por que todos ansiávamos, mas também o pai, filho, irmão, primo, compadre ou amigo que ambicionávamos ter. Oito anos depois, com Obama prestes a terminar o segundo mandato, David Brooks, colunista conservador e republicano em “The New York Times” — que muitas vezes discordara das políticas do Presidente — celebrava-o de forma singular: como um homem decente e íntegro, senhor de uma conduta cívica e moral exemplar e — caso raro e nunca visto — um Presidente cuja família imediata (mulher, filhas, sogra, etc.) nunca dera azo ao menor escândalo ou reprimenda. (O contraste com a atual presidência é por demais doloroso.)
Pete Souza, o fotógrafo oficial da Casa Branca durante os oito anos do mandato de Barack Obama, é um lusodescendente; embora nascido nos EUA, os avós paternos e maternos haviam imigrado dos Açores. Obama trata-o afetuosamente por “Azorean”
Todos nós guardamos no armazém da memória imagens prediletas de Barack Obama, seja a da sua face concentrada — uma entre muitas no acanhado Situation Room — a seguir à captura e morte de Osama bin Laden, ou a visitar a cela em Robben Island onde Nelson Mandela sofrera 27 anos de prisão; a dar uns passos desajeitados de dança enlaçando a mulher, Michelle, ou a apanhar, com a concha da mão, uma mosca impertinente numa entrevista na TV; a cantar, desafinado, o hino ‘Amazing Grace’, ou a deixar correr as lágrimas quando confortava as famílias das 20 crianças assassinadas na escola primária de Sandy Hook, Connecticut, naquele que ficaria, para Obama, como o pior dia da sua presidência, etc. Temos agora a oportunidade de revisitar muitas destas imagens no livro que o fotógrafo oficial da Casa Branca, Pete Souza, acaba de lançar: “Obama — An Intimate Portrait”, com introdução e foto do autor (em Petra, na Jordânia) por Barack Obama. Publicado na chamada holiday season, é um bálsamo para estes dez longos, acidentados e penosos meses que temos vivido desde a tomada de posse do novo Presidente. (Numa das fotos vemos de fugida um rasto da cabeleira pseudo-loura do sucessor de Obama.) O apelido do fotógrafo não engana: Pete Souza é um lusodescendente; embora nascido nos EUA, os avós paternos e maternos haviam emigrado dos Açores. Obama trata-o afetuosamente por “Azorean”. A outra ligação portuguesa é o casal de cães de água, “Bo” e “Sunny”, que integram a família Obama (uma promessa feita às filhas no discurso de inauguração em 2009).
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Momentos I Na Cimeira do G7 em Krün, Alemanha, com a chanceler Angela Merkel, 8 de junho 2015 (em cima); e no monta-cargas, com a primeira-dama, a caminho do baile inaugural. Estava frio e o Presidente pôs-lhe o casaco por cima dos ombros, 20 de janeiro de 2009 (em baixo) fotografias oficiais da casa branca/pete souza
Souza trabalhava para o “Chicago Tribune” quando Barack Obama foi eleito senador pelo estado de Illinois em 2004. Como correspondente nacional coube-lhe cobrir o primeiro ano de serviço do novo senador. (Daqui resultaria o livro “The Rise of Barack Obama”, publicado por “The New York Times” em 2008.) Entretanto, aceitara o convite para ensinar fotojornalismo na universidade de Ohio. Quando lhe ofereceram o lugar de Chief Official White House Photographer pôs como condição ter acesso a todos os eventos e situações, incluindo as mais secretas e “classificadas”. A amizade e a confiança da família Obama fizeram o resto. No prefácio, o Presidente considera-o “um amigo, irmão e confidente”, e admite que “provavelmente passara mais tempo com Pete Souza do que com qualquer outra pessoa, à exceção da família”. Dez a doze horas por dia, cinco dias por semana (às vezes seis ou sete), em todos os 50 estados da União e mais de 60 países, quase dois milhões e meio de quilómetros no Air Force One, etc. Com mais de 300 imagens, este “Retrato Íntimo” da Presidência Obama é o destilado de quase dois milhões de fotografias feitas!
Momentos II Como treinador-substituto, reagindo da bancada a um jogo de basquetebol da filha, Sasha, 5 de fevereiro de 2011 (em cima). Primeiro encontro com Putin na dacha deste nos arrabaldes de Moscovo, 7 de julho de 2009 (em baixo) fotografias oficiais da casa branca/Pete Souza
Pela amostra não hesito em afirmar que Pete Souza é um dos grandes fotojornalistas do nosso tempo. Impressiona-me, em especial, a intimidade do retrato, ancorada nas relações do homem com a mulher e as filhas, mas também com aqueles e aquelas que o serviam ou com quem colaborava (incluindo os respetivos parentes, crianças em particular). Quanto ao fotógrafo, é notável a maneira como ele se apaga voluntariamente para nos dar o carácter de um homem excecional, marido apaixonado e pai extremoso (por uma vez o cliché do adjetivo reproduz a verdade), na sede mais poderosa do mundo. Obama, por seu turno, confessa que na maior parte dos casos nem se apercebia da presença de Pete a fotografar. Apreciei o zooming nos pormenores que ninguém vê, como a placa na secretária proclamando que “Hard things are hard” (As coisas difíceis são difíceis), os dedos entrelaçados de Michelle e Barack, ou as pernas do Presidente (obviamente sentado no tampo da famosa Resolute Desk, secretária de trabalho no Oval Office) a baloiçar. Este é o livro de uma família normal mas exemplar a viver na Casa Branca. No prefácio, o Presidente agradece comovidamente a Pete as fotos de família (cães incluídos) e deseja que o leitor e respetiva família apreciem as fotos tanto como ele. Pater familias no seu melhor (a pensar nas outras famílias). Percebe-se o elogio. Algumas das melhores imagens mostram o Presidente na intimidade do lar, divertindo-se com Michelle ou ajudando Malia e Sasha a crescer. “Bo” também merece uma fotografia sozinho (a subir a passadeira vermelha da escada que conduz ao Air Force One).
Uma das delícias do livro “Retrato Íntimo” são as inúmeras fotografias onde Barack Obama conversa e brinca com crianças, ajoelhado ou de gatas no chão. O riso e o sorriso são contagiantes
O livro segue a ordem cronológica e as legendas e comentários de Souza ajudam a reconstituir a história da América nos últimos oito anos. Não faltam as interações com os responsáveis políticos de outros países, em casa e no estrangeiro. Lá está Durão Barroso à direita de Obama (numa reunião informal ao ar livre em Camp David com líderes de uma Europa que já lá vai...), mas também um momento a sós com Angela Merkel, nos Alpes alemães (onde os dois aparentam duas águias prestes a levantar voo). Há registo de triunfos memoráveis, mas também de várias desilusões e falhanços (nomeadamente quanto ao controlo da venda de armas). Após “os 40 minutos mais tensos da sua vida” (nas palavras do Presidente), Souza revela que ninguém exultou ou aplaudiu a morte de Bin Laden. Alívio, mas não orgulho.
Momentos III Encontro com o príncipe George em Kensington Palace, Londres, 22 de abril de 2016 (em cima). Ouvindo Thelma ‘Maxine’ Pippen McNair, mãe de uma das vítimas do ataque à bomba na Igreja Baptista da 16th Street em Birmingham, Alabama, em 1963, após a atribuição da medalha de ouro do Congresso, 24 de maio de 2013 (em baixo) fotografias oficiais da casa branca/Pete Souza
Oscilando entre o pessoal e o oficial, o livro está recheado de pequenas histórias, como a de Paul McCartney a cantar ‘Michelle, Ma Belle’ à primeira-dama, ou a da criança preta a apalpar a carapinha de um Obama todo curvado, para verificar que ambos tinham o mesmo tipo de cabelo, ou ainda a do jovem militar gravemente ferido no Afeganistão que o Presidente tinha cumprimentado um ano antes na Europa, e que mais tarde seria celebrado em sessão conjunta do Congresso. O calor humano é visível tanto nos beijos furtivos a Michelle como nas reuniões mais complicadas onde se jogava o bem-estar do povo americano ou o futuro das alterações climáticas.
Trabalho A ler, sentado à secretária (Resolute Desk), banhado pela luz de outono, 14 de outubro de 2016 fotografia oficial da casa branca/Pete Souza
Pete Souza seguia o Presidente como uma sombra, mesmo quando este conseguia escapar às imposições do protocolo nas chamadas visitas OTR (“off the record”), ou quando o “urso andava à solta” (a expressão de Obama para as sortidas inesperadas a restaurantes de fast food, para desespero dos seguranças). É o homem completo que emerge destas fotografias. À vontade num mar de gente em Praga ou na solidão das grandes decisões. Um homem que equilibra a razão com a emoção. Um homem de grande agilidade mental e física, que pensa e medita mas que não dispensa o exercício físico nem o contacto one-on-one com velhos e crianças. Na primavera costumava mudar as reuniões do Oval Office para o Rose Garden. Souza apanha-o a praticar o desporto favorito (basquetebol), mas também a jogar golfe, a enfrentar o surf e a pescar (uma soberba foto em Martha’s Vineyard).
Adeus No aeroporto de Accra (Ghana), após o discurso de despedida, 11 de julho de 2009 fotografia oficial da casa branca/Pete Souza
Uma das delícias deste “Retrato Íntimo” são as inúmeras fotografias onde Obama conversa e brinca com crianças, ajoelhado ou de gatas no chão. O riso e o sorriso são contagiantes. Deu a volta ao mundo a foto em que Souza captou o momento em que o príncipe George de Inglaterra, de pijama, é apresentado pelos pais ao Presidente dos Estados Unidos (que está de cócoras). No extremo oposto coloco as imagens que evocam a responsabilidade e solidão do cargo. Um Obama pensativo a consultar o seu BlackBerry; sentado no autocarro em que Rosa Parks desafiou as leis de segregação racial em 1955; a altas horas da noite na Sala Oval, etc. Obama confessou a Souza que muitas das suas ideias lhe ocorriam ao longo da colunata que separa a residência presidencial da West Wing (onde trabalhava).
retrato de Pete Souza o lusodescendente que durante oito anos foi o fotógrafo oficial de Barack Obama foto John Lamparski/Getty Images
“Obama — Um Retrato Íntimo” é um livro de imagens que dão que pensar. Numa delas vemos o casal Obama, abraçados um ao outro, na margem do Lago Michigan, contemplando a skyline de Chicago. Outra mostra o Presidente perante o Grand Canyon, num visita de família ao famoso Parque Nacional. A Metrópole do passado e a Natureza na sua eterna majestade. Terminada a inauguração do seu sucessor, a última fotografia é a de Obama, no helicóptero, a sobrevoar a Casa Branca, a caminho do futuro. “Era ali que vivíamos...”, disse então a Pete Souza. Ah, que saudades, digo eu.
Pete Souza, “Obama — An Intimate Portrait”, Allen Lane, 2017, 352 págs., €42,98
Jornal Expresso SEMANÁRIO#2354 - 8 de Dezembro de 2017
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