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Soldado Milhões
Soldado Milhões
Título original: Soldado Milhões
De: Gonçalo Galvão Teles, Jorge Paixão da Costa Com: João Arrais, Miguel Borges, Raimundo Cosme, Isac Graça, Tiago Teotónio Pereira, Ivo Canelas
Género: Guerra
Classificação: M/12
Outros dados: POR, 2018, Cores, 85 min.
Como tantos outros portugueses, Aníbal Augusto Milhais foi enviado como soldado para Flandres (Bélgica) durante a Primeira Grande Guerra. Na madrugada de 9 de Abril de 1918, dezenas de divisões alemãs irromperam pelo sector defendido pela segunda divisão do Corpo Expedicionário Português (CEP). Em poucas horas, naquela que ficaria conhecida como Batalha de La Lys, perderam-se mais de 7.500 homens. Contrariando ordens superiores e armado apenas com uma metralhadora Lewis, Milhais enfrentou sozinho sucessivas ofensivas alemãs, garantindo a retirada de vários companheiros. Pela coragem demonstrada no campo de batalha, foi premiado com a mais alta honraria nacional: a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito. A 5 de Julho de 1924, o Parlamento alterou o nome da povoação de Valongo, a sua aldeia natal, no distrito de Vila Real, para Valongo de Milhais, em sua honra. No ano em que se assinala o centenário do fim da Primeira Grande Guerra (1914-1918), acompanhamos o percurso do soldado que "se chamava Milhais, mas valia milhões", através de vários relatos e de uma intensa pesquisa documental.
Com realização de Gonçalo Galvão Teles ("Gelo") e do veterano Jorge Paixão da Costa ("Adeus Princesa", "O Mistério da Estrada de Sintra", "Jacinta"), segundo um argumento de Mário Botequilha, o filme conta com os actores João Arrais, Miguel Borges, Tiago Teotónio Pereira, Ivo Canelas, Isac Graça e Raimundo Cosme, e com as participações especiais de Lúcia Moniz e António Pedro Cerdeira. PÚBLICO
Trailer
I Guerra Mundial
O resgate do soldado Milhões

Foto d.r.
Filme estreado esta semana evoca o lendário soldado português que vendeu cara a derrota em La Lys. Bons efeitos especiais e reconstituição milimétrica das trincheiras no Campo de Tiro de Alcochete. Menos bem o cenário de algumas passagens do filme que nada tem a ver com as paisagens da Flandres
Texto Rui Cardoso
Durante dois anos - ou, melhor dizendo, quatro, se contarmos com os primeiros combates em Angola e Moçambique - Portugal empenhou mais de 200 mil homens na I Guerra Mundial, dos quais quase dez mil terão morrido, sobretudo em África mas também na Flandres. Muitos outros voltaram feridos, gaseados ou estropiados e a I República não resistiu a mais este trauma.
Tirando as obras de análise e ensaio, que memória deixou tudo isto na literatura? À parte diários, como os de Jaime Cortesão, Bento Roma ou Raul Carvalho, muito pouco. E quanto a filmes, apenas “João Ratão”, de Jorge Brum do Canto (1940). Deste passaram à posteridade duas coisas: a cena do dito João salvando o tenente Resende em La Lys e o “Fado do Pão-de-ló”, antes popularizado por Estêvão Amarante, cujos versos terminam assim: “Por isso a guitarra amiga nunca abandona o soldado/Transforma a dor em cantiga, que é o seu fado/E diz em tom plangente com orgulho e altivez/Que o mais valente é o soldado português”...
Agora, 100 anos depois de La Lys, surge “Soldado Milhões”, de Gonçalo Galvão Teles e Jorge Paixão da Costa, estreado esta semana. Milhais se chamava, mas depois dos seus feitos disseram-lhe que valia por Milhões - e assim passou a ser conhecido.
Divórcios da realidade
Filme de guerra que se preze arrisca-se a ter discrepâncias com a realidade. “A Ponte do rio Kwai” (David Lean, 1957) evoca a barbaridade dos campos de prisioneiros nipónicos e confronta-nos com a loucura inerente à guerra, mas a verdadeira ponte não foi destruída por um grupo de comandos, mas pela aviação americana.
“Uma ponte longe demais”, de Richard Attenborough (1977), retrata epicamente um dos maiores falhanços britânicos da II Guerra Mundial (o ataque a Arhnem, na Holanda), mas mostra a fazer ataque ao solo aviões Harvard AT-6, que nunca operaram na frente ocidental.
A carga de infantaria que supostamente decide a batalha de La Drang, no Vietname, retratada no filme “Fomos Soldados” (Randall Wallace, 2002) nunca aconteceu e o ataque decisivo ao solo não foi feito pelos helicópteros UH1 do major Crandall, mas por monomotores a hélice A1 Skyraider. Para além de, nas cenas iniciais que remetem para a I Guerra da Indochina, os uniformes franceses estarem quase todos trocados e a unidade Mobile 100 ter sido muito castigada mas não destruída pelo Vietminh.
Distorções históricas
E poderíamos continuar, evoluindo dos meros erros factuais para a distorção histórica. “Dunquerque” (Christopher Nolan 2017) é um belo filme, mas ao mesmo tempo parece a justificação subliminar do Brexit, ao minimizar o sacrifício dos franceses e belgas que ficaram para trás a proteger a retirada britânica ou escamotear as divisões no alto comando alemão que levaram à suspensão do avanço dos panzer.
Até chegarmos a essa abominação chamada “U 571” (Jonathan Mostow, 2000), filme americano inspirado na captura de uma máquina de cifra Enigma de bordo de um U-Boat alemão. Na verdade foi feita por marinheiros e fuzileiros britânicos, e não por um submarino americano, muito menos nas circunstâncias daquele enredo.
Como fica “Soldado Milhões” no meio de tudo isto? Globalmente bem, ainda que com sinais contraditórios.

As medalhas que pesavam
A narrativa decorre em dois planos temporais, alternando a Flandres de 1918 e as recordações que ainda atormentam Aníbal Milhais em Valongo (Murça), 25 anos depois. Bem introduzidas as referências ao stress pós-traumático, à instrumentalização do herói pela ditadura e à reação deste que repete constantemente, para explicar porque não usa as condecorações em público, que essas medalhas “pesam muito…”

O mesmo se diga do romanceado encontro do praça Milhões com o capitão-médico Jaime Cortesão, encarregado contra a sua vontade de censurar a correspondência dos soldados. Ou da dimensão religiosa profunda, ilustrada pela cena na capela no alto da serra onde o ex-soldado mostra à filha o lenço bordado que ofereceu à padroeira em cção de graças por ter voltado vivo e inteiro – permaneceu 25 anos escondido debaixo da imagem de Nossa Senhora. Ou ainda da ironia mostrada nas cenas iniciais quando, dos navios que transportam o CEP, se vê Lisboa iluminada pelas explosões de mais uma revolução, o que leva um dos soldados a perguntar: “afinal, a guerra é aqui?”
Onde o filme fraqueja é nos cenários.
O décor escolhido para as cenas de 1943 é perfeito. Estão lá as serras sem fim, as lajes de granito, os horizontes coroados pela capela, sem esquecer o fojo do lobo, que remete para a luta ancestral com o velho inimigo dos aldeões.

Já o cenário da guerra revela problemas. As trincheiras de La Lys foram recriadas com esmero no Campo de Tiro de Alcochete e os combates tratados com eficientes e credíveis efeitos especiais da responsabilidade de Jorge Carvalho. De resto alguns momentos dos combates com os alemães fazem lembrar fotogramas de “A Oeste Nada de Novo” (Lewis Milestone, 1930), o que não tem nenhum problema: quando se copia uma coisa bem feita dificilmente o resultado será mau. Apenas um reparo: rezam as crónicas que o ataque alemão começou às quatro da manhã a coberto de um espesso nevoeiro, coisa que o filme não retrata.

O problema é quando a câmara se afasta da linha de trincheiras e da terra de ninguém, seja para retratar as idas e vindas do destacamento, seja para mostrar a retirada aventurosa de Aníbal Milhais depois do ataque alemão. Começam a aparecer sobreiros e paisagens alentejanas com pequenas colinas arborizadas que nada têm a ver com uma Flandres plana, barrenta e devastada por quatro anos de guerra. Sem dar cabo do orçamento da produção talvez tivesse sido possível filmar essas cenas mais a sul, por exemplo no cenário apocalíptico das Minas do Pomarão, dando-lhes outra credibilidade.
Se as cenas de combate são tecnicamente irrepreensíveis e de bom nível há um problema de argumento subjacente. Ataques frontais à primeira linha como os que são mostrados várias vezes nunca ocorreram no sector português antes da batalha de La Lys propriamente dita. Houve flagelações com artilharia, escaramuças entre patrulhas ou golpes de mão, mas nunca choques de infantaria em grande escala. O que não impediu que em seis meses num sector relativamente calmo da frente tivesse havido 300 mortos em combate e outros tantos por doença.

Sozinho contra todos?
Outra incoerência é a ação do próprio Milhões. É verdade que usou a sua metralhadora Lewis para cobrir com sucesso a retirada dos camaradas e que conseguiu regressar às linhas britânicas (porque portuguesas já não as havia). Mas fê-lo à maneira de um caçador transmontano que era, e cujos antepassados tinham caçado o lobo ou emboscado o castelhano e o francês nas veredas da serra. Ou seja, foi recuando, aparecendo para disparar uma rajada e esconder-se, mudando sempre de posição e não se deixando surpreender, mais à maneira de um guerrilheiro que de um soldado de linha. Recuperando munições e comida dos soldados mortos, como o filme sugere e é plausível que tenha feito. E que tinha de ser um homem robusto, pois a arma pesava 13 kg e tinha recuo significativo.

Se, como mostram as imagens finais, Aníbal Milhais tivesse ficado sozinho na trincheira, sem sequer um servente que o ajudasse a mudar os tambores de 45 ou 90 balas da arma, enfrentando o ataque de uma companhia inimiga numa frente larga não teria durado três minutos, bloqueado pelo fogo das armas automáticas das Stosstrupen (tropas de assalto alemãs), envolvido pelos flancos e pela retaguarda e eliminado a tiro ou à granada.
Se assim tivesse sido, Aníbal Milhais não teria sido o único soldado raso a ter recebido a Torre e Espada e o seu nome estaria em mais uma das campas do cemitério militar português de Richebourg, perto de Calais.
Jornal Expresso Sexta 13 Abril, 2018
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