S. Pedro de MiragaiaPrimitiva terra de pescadores e de marinheiros
Nos tempos de Camilo, e é ele que o diz, "o espaçoso areal não bastava (em dia de S. Pedro) para os jorros de povo que confluíam das ruas sobranceiras".
A festa, é o mesmo escritor que o afirma, resumia-se a "uma porção fabulosa de estouros; um inferno indescritível de fogueiras; e ao consumo sobrenatural [exagerado] de algumas pipas de vinho, de fritadas de linguiça, postas de pescada e bebedeiras sem cifra conhecida", o que, dito por outras palavras, quer dizer sem conta nem medida.
O areal há muito que desapareceu. Estendia-se desde junto dos arcos das casas que lhe ficavam fronteiras, hoje Rua de Miragaia, até à borda de água.
Rua Nova de Miragaia se chamava a artéria no século XV. E, três séculos depois, já era a Rua dos Cobertos, por causa dos alpendres formados pelos arcos sobre os quais se construíram as casas. Era a artéria mais importante do já então populoso bairro.
Ao longo dela havia várias fontes, algumas muito antigas, outras verdadeiros primores de arte. Num documento do ano de 1566, existente no tombo do Cabido, são referenciadas umas casas "que ficam além da Fonte do Touro, por debaixo dos cobertos".
Esta Fonte do Touro, muito antiga, ficava à entrada da atual Rua Arménia, para quem nela entra do lado da igreja, nas traseiras de um prédio, entretanto demolido, que, em 1872, servira de sede à Intendência da Marinha.
A Rua Arménia evoca a chegada a Miragaia, em 1453, de uma colónia de mercadores arménios que, fugidos de Constantinopla a uma invasão turca, por cá ficaram e se instalaram na rua que tomou o seu nome. Antes, a artéria denominava-se Rua de Trás (dos cobertos) e Rua da Barreira.
De tudo o que atrás fica dito, não é difícil concluir que estamos perante um dos sítios mais antigos e emblemáticos da cidade.
A propósito dessa antiguidade, houve, inclusivamente, quem tivesse defendido a ideia, obviamente errada, claro, de que foi em Miragaia que nasceu, no século V, o primitivo núcleo populacional do Porto, que os suevos teriam mudado para o cimo da Penaventosa.Hoje, sabemos que há três locais referidos como sendo aqueles em que, provavelmente, terá aparecido a primitiva povoação, a saber: a Cividade, junto à atual Rua do Corpo da Guarda; o morro da Penaventosa, onde se ergueu a catedral; e, numa hipótese mais remota, a Ribeira, onde atracavam navios desde remotas eras.
Seja como for, de que Miragaia é povoação muito antiga, não haja a menor dúvida. Não se sabe ao certo, por exemplo, em que época terá sido construída a Igreja de S. Pedro de Miragaia. Mas sabe-se que o primitivo templo já existia em 1453, quando ali foi depositado o corpo de S. Pantaleão, trazido pelos arménios atrás referidos e cuja história contamos ao destaque junto.
Essa igreja devia ser do tipo da igreja velha de Cedofeita, românico, provavelmente do século XIII. O bispo D. Nicolau Monteiro reformou-a em 1672. Mas, 58 anos depois, em 1740, o templo ameaçava ruir e o cabido, aproveitando o período de sede vacante, a diocese sem bispo, então em vigor (1717-1741), mandou construir um novo templo, o atual, "toda de pedra, bem obrada e ornada; toda de composição proporcionada com sua torre de quatro sineiras, escadas de pedra e abóbada, tudo em remates de estilo moderno".
O custo das obras foi repartido entre o Cabido e os fiéis de Miragaia. A estes, por exemplo, coube pagar as obras da capela-mor, "a qual reformaram e acrescentaram: lhe puseram suas janelas de luzes e uma grande tribuna e retábulo dourado e cobriram o teto e lado da mesma capela com obras de talha e escultura dourada e lhe fizeram oferta de preciosos ornamentos para suas solenidades".
A talha dourada que reveste a capela-mor, é no seu género, das mais maravilhosas das que existem nas igrejas do Porto.Rua de Miragaia e antigo largo dos navios, junto Fonte da ColherA história do culto a S. PantaleãoOs arménios a que se faz referência no texto ao lado trouxeram com eles o corpo de S. Pantaleão, um médico arménio, cristão que foi martirizado pelos turcos por não querer abandonar a sua fé. O seu corpo foi recolhido, em 1453, na que deve ter sido a primitiva igreja de S. Pedro de Miragaia. Naquele tempo, apareceu um surto de peste para os lados do Olival. Os moradores de Miragaia pediram a S. Pantaleão que intercedesse por eles e desse modo evitasse que a peste chegasse ao bairro junto ao rio. Assim aconteceu. O "milagre" foi de imediato atribuído a S. Pantaleão, que o povo da cidade graduou em padroeiro do Porto. Mas logo a seguir, 1499, o bispo D. Diogo de Sousa mandou que o corpo de S. Pantaleão fosse levado para a Sé. Em Miragaia ficou uma relíquia do padroeiro guardada num braço de prata. Nos idos de cinquenta do século XX, D. António Ferreira Gomes destronou S. Pantaleão do padroado da cidade e instituiu no seu lugar Nossa Senhora de Vandoma.
Jornal de Notícias - 1de julho de 2018
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